Marcelo Cohen conta que, em volume de vendas, empresa só perde na região para duas empresas de capital aberto: Despegar, dona da Decolar, e CVC
Matéria original publicada no Jornal Valor Econômico por Daniel Salles em 22/07/22. Clique aqui para acessar.
Naquela época todo mundo ainda incluía sabonete e toalha na mala de viagem. Falamos do início dos anos 1980, quando a Belvitur conquistou uma de suas primeiras contas de peso – a da Fiat, que se instalou no Brasil, mais precisamente no município de Betim, em Minas Gerais, no ano de 1976.
Concentrada em viagens corporativas, a agência de turismo de Belo Horizonte fisgou a montadora graças a uma proposta que hoje soa tão inovadora como o quebra-vento dos carros: a instalação de um ramal telefônico na fábrica da Fiat conectado à Belvitur. Tudo para agilizar a emissão de passagens. Proposta aceita, essas começaram a ser entregues a bordo de uma Vespa – e imediatamente após alguém acionar o tal ramal.
A conquista da conta da Usiminas se deve a mais uma inovação que remete aos tempos da Panair: o verso da capa usada pela Belvitur para proteger as passagens aéreas, volumosas naquela época, podia ser usado como espaço publicitário, o que a gigante do aço adorou. “Hoje não existe mais nada disso”, admite Marcelo Cohen, dando fim à viagem no tempo na qual embarcou para resumir a trajetória da agência.
Ela foi fundada em 1963 pelo pai dele, o engenheiro David Cohen, que está com 88 anos. Presidente da empresa desde 2020, o filho, hoje com 52, a transformou em um gigante chamado BeFly. Trata-se da holding criada no ano passado após a Belvitur arrematar a concorrente Flytour por R$ 500 milhões. De São Paulo, essa última estava às voltas com uma dívida de R$ 142 milhões com bancos – para não falar das imensas dificuldades impostas pela pandemia ao setor.
“Queremos ter um ecossistema bastante robusto e que venda muito mais que passagens e estadias. Queremos fazer barba, cabelo e bigode”
Em 2019, quando a Belvitur faturou R$ 800 milhões, a Flytour amealhou R$ 6,2 bilhões, cifra que, por causa do novo coronavírus, caiu para menos de um terço em 2020. Antes de passar para as mãos de Cohen, o melhor mês da história da agência paulista foi o de março de 2019, quando ela embolsou R$ 570 milhões. Em maio deste ano, registrou-se um novo recorde, de R$ 800 milhões.
“As dívidas dela foram quase todas liquidadas, e a expectativa de faturamento da Flytour para este ano é de R$ 8 bilhões”, diz Cohen no início deste “À Mesa com o Valor”. Sem planos de fundir suas marcas, a BeFly espera embolsar R$ 10 bilhões no ano que vem. O faturamento total da holding previsto para 2022 não é revelado. “Ainda não consolidamos os resultados de todas as companhias”, desconversa o entrevistado.
Das 30 marcas que fazem parte da holding, 21 foram criadas ou arrematadas durante a pandemia. Não à toa, a maioria das empresas adquiridas andava mal das pernas – começando pela Flytour, que virou o carro-chefe da BeFly e dispõe de várias marcas, como Flytour Business Travel e Flytour Eventos. “Diferentemente da Belvitur, elas ingressaram na pandemia com problemas de caixa e realmente não conseguiram se segurar”, diz Cohen, que mexe as pernas sem parar ao longo de toda a entrevista. “Mas são empresas extremamente antigas e respeitadas.”
Em janeiro, ele adquiriu a Queensberry, referência no mercado de luxo que enfrentava um processo de recuperação judicial, com dívidas de R$ 50 milhões. O valor gasto com a aquisição não foi divulgado, assim como as cifras desembolsadas com as compras das demais empresas do grupo – abriu-se uma exceção apenas em relação à Flytour. Em junho, entrou para a holding a Qualitours, que vende cruzeiros de luxo, e a agência online Instaviagem. “Quero montar o maior ecossistema de turismo da América Latina”, diz o empresário.
Ele informa que, a cada dia, os clientes do grupo ocupam quase 1,3 mil quartos de hotéis localizados no estado de São Paulo. “Anualmente, no país todo, são cerca de 700 mil diárias”, acrescenta. Em volume de vendas, a BeFly só perde na América
Latina para duas empresas de capital aberto, a argentina Despegar, dona da Decolar, e a brasileira CVC.
O ingresso da BeFly no mercado de capitais é esperado para 2024. “Nossa meta é deixar a empresa preparada para um IPO, mas sem pressa”, diz Cohen, que hoje exerce o cargo de CEO da holding. “Se acontecer, ótimo, mas se não acontecer, não será um problema.”
Para o almoço com o Valor, ele escolheu a unidade nos Jardins, em São Paulo, da churrascaria Rodeio. Fica nos arredores da sede da holding, o que explica o crachá que ele traz pendurado no pescoço. De suéter preto, calça cinza e sapatênis, veio escoltado pela diretora de marketing do grupo, Flávia Possani, e pela gerente de marca e comunicação, Andrea Panisset. Lucia Paes de Barros, assessora de imprensa, também participa do encontro.
Com pão francês, pão de queijo, manteiga, cenoura cozida, tomate e molhos para churrasco, o couvert chegou à mesa antes de todos. Habitué do Rodeio, Cohen senta de costas para o salão principal, que em pouco tempo ficaria lotado. Assim que se acomoda, pede uma Coca-Cola Zero e mordisca uma cenoura, seguida de um pão de queijo – não deu bola para nenhum outro item do couvert.
Depois pergunta se alguém não come carne para propor picanha fatiada para todos. Proposta aceita, comunica a decisão do grupo ao garçom, elegendo três acompanhamentos – arroz biro-biro, batata suflê e farofa de ovo. Como entrada, pede para todos salada de agrião, tomate e cenoura. Pula a sobremesa, como todo mundo, mas não resiste ao pratinho com balas de coco que acompanham o café,
recusado por ele.
Dá início à conversa informando que as receitas da Belvitur caíram até 95% em 2020. E que ninguém o incentivou a adquirir outras companhias com a pandemia como pano de fundo. “Todo mundo dizia que o mercado de viagens corporativas não teria volta”, recorda. “Mas eu apostava na retomada e baseado, unicamente, no meu ‘feeling’. Não tinha nenhum dado para sustentar isso.”
Depois lembra que, quando o panorama começou a melhorar, previu-se que o mercado de turismo corporativo voltaria a crescer só a partir de 2023. “Acontece que já voltou e está bombando”, observa. “Para fora do país um pouco menos, mas só porque a oferta de voos ainda está menor que a de antes da pandemia. Os aviões, no entanto, estão decolando completamente lotados. Passagens na classe executiva que saíam por US$ 2 mil agora custam mais de US$ 7 mil.”
De acordo com a Braztoa, entidade que representa as operadoras de turismo do país, elas faturaram R$ 7,1 bilhões em 2021. É um resultado 77,3% melhor que o de 2020, embora 54,8% pior que o de 2019. Já as viagens de avião negociadas por empresas do tipo cresceram 124% no ano passado e 14,2% em relação a 2019, totalizando 7,4 milhões de passageiros embarcados.
Em outras palavras, elas ainda não voltaram aos patamares de antes da covid-19, que fez o faturamento delas retroceder a níveis dos anos 1980. Já se assemelham, no entanto, ao que foi registrado em 2010. Pelas contas da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 1.390 agências de turismo deixaram de existir em 2020.
A BeFly presta serviços para quase 3,5 mil empresas do tipo, dos mais diversos portes. Para ajudá-las a não naufragar durante a pandemia, emprestou, sem cobrar juros, cerca de R$ 15 milhões para aproximadamente 400 delas. “Muitas agências de turismo ficaram sem dinheiro até para pagar décimo-terceiro salário”, observa o CEO. “Precisamos que elas se mantenham saudáveis.”
Ele não acredita em “novo normal” ou na perenidade de qualquer tendência da pandemia ligada ao turismo. “Está tudo voltando como antigamente”, exagera. “A maioria das empresas que adotou o regime de home office já voltou para os escritórios ou estabeleceu, no máximo, um dia de trabalho remoto por semana. Julho, dezembro e janeiro voltaram a ser os meses de alta temporada para o turismo. E aquela história de viajar a lazer e trabalhar durante a estadia não existe mais.”
De reuniões online, acrescenta, agora foge como o diabo da cruz. “Quer marcar uma reunião comigo? Agora só presencialmente”, revela ele, que dois dias depois embarcaria para Milão, na Itália, de olho em um possível negócio. “Poderia recorrer ao Zoom, como várias outras pessoas interessadas no mesmo negócio estão fazendo”, argumenta. “Mas faço questão de ir até lá apertar a mão da pessoa com quem estou negociando. Sei que isso será um diferencial, embora vá me custar tempo e dinheiro.”
Não discorda do clichê de que “os brasileiros descobriram o Brasil na pandemia” em função dos entraves que ela impôs às viagens internacionais. Mas só em parte. “Muita gente começou a viajar pelo Brasil, descobriu vários lugares legais”, diz. “Todos os meus clientes que viajaram pelo país em julho do ano passado, no entanto, agora querem curtir o verão europeu ou ir para a Disney, nos Estados
Unidos. No Brasil, não querem ficar, a não ser que estejam sem grana. Vão preferir Campos de Jordão à Europa? Não existe isso.”
Não deixa de ser irônico que ele tenha comprado, no ano passado, um hotel exatamente nessa região, o Botanique. Na divisa de São Bento do Sapucaí com Santo Antônio do Pinhal e Campos do Jordão, foi inaugurado em 2012 com a diária inicial mais cara do país – a hospedagem mais em conta, durante a semana e só com café da manhã, custa R$ 2.414.
São apenas 20 acomodações. As sete suítes se enfileiram na charmosa sede, conhecida pelos enormes painéis de vidro que emolduram a paisagem ao redor, pelas paredes de pedra, pelo restaurante Mina e pela piscina cuja borda é envidraçada. Com áreas que variam de 100 a 300 m2 e diferenciais como lareira e banheira a céu aberto, as 13 vilas se espalham pelo terreno que soma 200 mil m2.
Criado por Fernanda Ralston Semler e seu marido, Ricardo Semler – controlador do grupo Semco e fundador da escola Lumiar e do Semco Style Institute, além de autor de best-sellers como “Virando a própria mesa” -, o Botanique passou a ser administrado pela rede Six Senses em janeiro do ano passado. Pouco antes, o hotel passou para as mãos de Cohen e de Daniel Vorcaro, presidente do Banco Master.
A dupla arrematou o controle de Fernanda e Semler, que se mudaram no ano passado com a família para San Diego, na Califórnia, e a pequena fatia que pertencia a David Cole, fundador da AOL, e Gordon Roddick, um dos criadores da The Body Shop. O valor da aquisição é mantido em sigilo.
Os novos donos prometem investir R$ 80 milhões no Botanique para construir mais uma piscina e uma nova academia, expandir o spa, reformar o Mina e receber o dobro de hóspedes. “O Botanique é uma joia, não sei se existem cinco ou dez hotéis iguais a ele no Brasil”, diz Cohen. “Queremos transformá-lo no melhor hotel boutique do país.”
Do chamado pós-luxo, termo cunhado por Fernanda Semler para definir a proposta do hotel, se diz partidário. Trata-se, em resumo, de uma crítica à ostentação e de uma defesa de experiências aparentemente triviais, porém cada vez mais raras, como apreciar um céu estrelado só com a natureza como trilha sonora. Cohen opõe o tal do pós-luxo, no entanto, ao que define como “luxo brega”. “Respeito quem gosta de ostentar, mas não é a minha praia”, afirma ele, também dono do hotel TRYP by Wyndham que fica no aeroporto de Guarulhos.
Cohen e Vorcaro também planejam tirar do papel um projeto antigo, o de uma espécie de Fazenda Boa Vista no complexo de 2,5 milhões de m2 no qual o hotel está inserido. A meta inicial é construir 13 casas de 800 m2 assinadas por arquitetos renomados – deverão sair por R$ 8 milhões cada uma.
É uma aposta na maior procura por condomínios em meio à natureza e longe dos centros urbanos, uma tendência que ganhou força na pandemia. Cohen acredita, no entanto, que a maioria das pessoas que decidiu morar em empreendimentos do tipo durante a fase mais crítica da covid-19 já voltou atrás. “Na época em que não dava para frequentar shoppings, restaurantes ou ver os amigos, é claro que
ninguém queria ficar trancado no apartamento”, raciocina. “Quando tudo isso voltou a ser possível, a maioria que foi para o campo mudou de ideia.”
Cohen não esconde o desejo de fazer novas aquisições. “Já atuamos em quase 90% das áreas que estavam no radar, mas ainda faltam algumas, como a de alimentação para eventos”, revela. “Queremos ter um ecossistema bastante robusto e que venda muito mais que passagens e estadias. Queremos fazer barba, cabelo e bigode.”
Daí a aposta no conceito de “one-stop shop”, que as lojas de todas as marcas da holding deverão adotar. Nada mais é do que a venda de todos os produtos oferecidos pela BeFly no mesmo endereço. “O mesmo cliente que adquiriu uma passagem aérea, cuja rentabilidade é pequena, pode nos dar muito mais dinheiro com a compra de câmbio ou com seguro viagem”, justifica o empresário, listando outros serviços ofertados.
As 74 lojas da Flytour, todas franquias, estão abraçando a ideia pouco a pouco, assim como as 12 da Belvitur (essas são próprias). E o objetivo é inaugurar mais 80 franquias neste ano, mais focadas no turismo de lazer e nos consumidores finais duas outras marcas voltam-se às viagens corporativas). “Queremos ter de 400 a 600 franquias e todas ‘one-stop shop’”, adianta o empresário.
Na pandemia, a holding deu início a um negócio que não tem nada ver com turismo. Transformou um prédio que pertence à construtora de Cohen em um enorme espaço de coworking. Fica nos arredores da praça da Liberdade, em BH. A mudança se deve à saída de três grandes inquilinos. Nove dos 20 andares foram transformados em áreas de coworking. “A ocupação é próxima de 98%”, gaba-se Cohen. “Sinal de que o home office não está mais tão em alta.”
Um andar é ocupado pela BeFly e outro pela Flytour. O QG da holding, porém, é um edifício de 12 andares na alameda Campinas, em São Paulo, ocupado inteiramente por ela. Cerca de 1,5 mil pessoas trabalham na sede – a Belvitur tinha só 150 funcionários. “O que mais me incomoda no trabalho, e profundamente, é não saber o nome das pessoas”, afirma. “Na Belvitur eu sabia o nome de cada um e também
dos maridos, das esposas, se o filho de alguém ‘mexia’ com droga, era uma família.” Para contornar o incômodo, tem se reunido, semanalmente, com 15 funcionários por vez, para conhecer todo mundo.
Ele sustenta que qualquer colaborador pode entrar na sala dele na hora que quiser, sem qualquer cerimônia. E diz que a regra vale tanto para os office-boys quanto para os fundadores das companhias incorporadas. Sim, esses últimos em geral continuam dando expediente nas empresas que eles passaram para frente.
É o caso de Eloi D’Avila, que tirou a Flytour do papel, e de Martin Jensen, fundador da Queensberry. “Quando vou comprar uma empresa, o fundador tende a achar que quero tirá-lo do negócio. Mas o que digo é que só compro se ele continuar”, garante. “Falamos de empresários que criaram companhias do nada. Podem não ter a mesma força de trabalho de quando tinham 50 anos, mas têm muita experiência, o que valorizo muito. Damos as diretrizes de cada companhia porque colocamos dinheiro nelas, mas a opinião dos fundadores é sempre válida.”
Desde que montou a BeFly, ele mora de segunda a sexta em um hotel na alameda Santos, a poucas quadras. Reencontra Gabriela Cohen, com quem é casado há 22 anos, e as duas filhas do casal, Vitória e Sofia, gêmeas de 20 anos, só nos fins de semana. É quando volta para casa, em Belo Horizonte, onde nasceu. “Se for preciso trabalhar sábado, domingo ou até a meia-noite, não vejo problema”, registra ele, que diz acordar diariamente por volta das 4h30 e sem despertador. Na falta de compromissos noturnos, deita em torno das 20h30.
Nas ruas da capital mineira, ele costuma circular ao volante de um Gol 2.0 GTI, ano 1994, na cor vinho. É um sonho de consumo da juventude que realizou há pouco tempo. “Sempre quis ter, mas meu pai achava que eu não devia ter um carro tão bom naquela época”, justifica ele, que já arrematou outros clássicos do gênero como um Dodge Dart e um Opala. “Eu também não dei o melhor carro para as minhas filhas.”
Dos três filhos de David Cohen, o entrevistado – o caçula – foi o único que quis seguir os passos do pai no ramo do turismo. Quando tinha 16 anos de idade, ingressou na Belvitur, da qual só se afastou para cursar administração de empresas no Colorado, nos Estados Unidos. “Turismo sempre foi a minha paixão”, resume. Especializou-se na área de vendas, mas diz ter feito de tudo na companhia.
Os quase sete anos nos quais exerceu a função de guia de brasileiros na Disney não poderiam passar sem registro. “Ia com bandeirinha e tudo e adorava”, recorda. Recentemente, em um restaurante, ouviu de uma senhora o seguinte pedido: “Você pode tirar uma foto comigo?”. Concordou, mas quis saber o motivo. “Você foi meu guia na Disney”, explicou a mulher. Ligeiramente constrangido, o empresário retrucou: “Não foi da sua filha, não?”. E ela: “Não, e eu tinha 15 anos.”
Encerra o encontro lembrando de mais um causo da época da Disney, há uns 30 anos. Envolve um empresário, cujo nome se nega a revelar, que estava para desembarcar em Orlando sob os cuidados da Belvitur. De última hora, porém, o serviço de transfer contratado avisou que atrasaria meia hora. Sem conhecer o sujeito, Cohen se dispôs a buscá-lo no aeroporto a bordo do Chevrolet Suburban
com o qual circulava pela cidade. Vestiu um terno, lavou o carro e, de plaquinha em punho, recepcionou o recém-chegado, que veio acompanhado da mulher e da filha – o trio foi acomodado no banco traseiro.
Papo vai, papo vem, o visitante disse que conhecia o dono da Belvitur. “É o meu pai”, esclareceu o futuro CEO da BeFly. Constrangido por estar no banco de trás, o outro fez questão de pular para o da frente. “No dia seguinte ganhei a conta da empresa dele”, relembra Cohen. Sempre que o encontra, ouve do sujeito a seguinte saudação: “Meu motorista predileto!